1 de janeiro de 2012

Memorie

              Ao longe, olhares que me alcançam, mesmo que me esforce para esconder. Computador ligado. Atenção enfiada em alguns artigos, localizada por acaso sobre a mesa. Não consigo me concentrar. Mas tento. Documentos que tenho que ler e passar o aval para meu chefe assinar. Três vezes em uma mesma linha. Olhos sem rumo. Levanto-me, e mesmo sem ver, consigo sentir todos me encarando, cochichando. “Que pena da filha do Arthur... Tão novinha, e essa desgraça”. “Dizem que o corpo dele estava estraçalhado e ela que teve que identificar. Vomitou por todo o necrotério, coitada”. Alguns chegam aos meus ouvidos, e permaneço encarando o horizonte, impassível. Três anos de teatro deveriam servir para alguma coisa.
               Refugio-me na sala de café. Vazia. Queimo-me, desajeitada. Nunca fui muito boa na cozinha. Meu marido sempre fazia tudo para mim. Eu até conseguia imaginar as vozes em minha cabeça, com seus famosos pratos italianos. “Hoje teremos Noche ao Sugo. Já comeu? Um belo prato. Belíssimo. Aprendi em minha aula de culinária de ontem.” “Está triste? Vou lhe fazer um Fettuccine à Carbonara de Camarões.” Sempre conseguindo falar as coisas certas nas horas ruins. Arrancando-me sorrisos. Aquele cabelo ao estilo italiano. Um pouco grande, mas não muito. Fios pretos. A barba que conseguia ser sexy, mesmo eu nunca apreciando tal estilo. Vez ou outra permanecia sem camisa dentro de casa, apenas com uma calça jeans e o seu avental branco. Todo sujo, mas ainda assim gabando-se de seus pratos impecáveis. “Uma bela sobremesa para um sábado chuvoso. Vamos comer assistindo Amelie Poulain. Um Coulis de Morango. Diretamente da França!”
               Percebo que o café esfriou em minha mão. Jogo fora e pego outro. Desta vez, um capuccino. Meu favorito. Escuto um barulho e vejo Daniel se aproximando com uma cara frustrada.
               — Esses malditos investidores... Sempre querendo dificultar minha vida.
               Caminha diretamente para a máquina de café. Nem parece me notar. Mas percebe a presença. E se vira.
               — Olá Luísa — a pena chega aos olhos — Meus pêsames pelo que aconteceu. O seu marido era realmente uma pessoa admirável.
               Murmuro um agradecimento e me retiro do aposento. Sempre as mesmas palavras. Admirável. Talentoso. Incrível. Mas que merda. Eu sabia disso. Por que as pessoas tinham que ficar repetindo? Ele não voltaria, acabou. E aí trazer as memórias de volta não era a melhor maneira de me fazer esquecer. Martelar na mesma tecla.
               Sento-me em minha cadeira e deixo o capuccino em cima de documentos importantes, sem me importar. Olho para meu reflexo na tela do computador e penso em como seria bom comer um belo Fettuccine com paillard. Mas aí me lembro que não havia cozinheiro. Talvez me aventurasse em um restaurante italiano. E tomaria um belo vinho tinto. Mas a ideia logo me desanima. Faria o prato universitário tradicional. Miojo ao tempero de galinha. Deveria bastar. Fazia tanto tempo que eu não comia, que a ideia até chegou a me animar. Mas não o suficiente. Por que eu não encontraria vestido com o seu avental branco e calça jeans, com aquele belo sorriso no rosto, que bastaria para apagar todo um mau dia de trabalho.

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