20 de outubro de 2009

A última história

— Vamos, entre. Deste jeito não vai conseguir ouvir minha última história.
O velho disse isso com uma voz fraca que o garoto quase não conseguiu ouvir. No entanto, conseguiu. Temia ele que não conseguisse ouvir aos sussurros do velho por mais tempo. Apesar da saúde frágil e da morte batendo na porta, o velho era muito sábio e sempre contava a ele as melhores histórias que já havia escutado.
— Última história?— o garoto perguntou, um tanto amedrontado, mas tentando não demonstrar esse medo. Sentou-se na cadeira que já era reservada para ele e ficou olhando com olhos curiosos e assustados para o amigo que conhecera um mês antes — Que quer dizer com isso?
— Que é a última história, oras! — o velho disse em tom de indignação — Posso ser velho e demasiadamente inválido, mas consigo perceber quando a hora de ir-se chega.
O garoto nada disse. Apenas ficou perguntando-se em seus devaneios o modo que o velho usava para aceitar a morte de maneira tão fácil. Devia ser o tempo... Coisas que só quando se é adulto é possível entender.
O velho não esperou que o garoto respondesse. O tempo era curto e o que ele queria falar era muito. Pegou com as mãos trêmulas um pequeno diário que mantinha guardado debaixo do travesseiro e o estendeu, quase o deixando cair.
— Hoje não sou eu quem vai falar. Vai ser você — disse o velho enquanto interrompia-se entre uma palavra e outra com acessos de tosse — Já não tenho mais forças para falar, mas este diário falará por mim.
O garoto levantou-se apressado. Movido pela curiosidade de ler o diário tão bem guardado e pela vontade louca de agradar ao velho o máximo que pudesse.
Sentou-se novamente em sua cadeira desconfortável e abriu o livro perguntando-se por onde começar.
— Dia 23 de Setembro, meu garoto. Logo no início da primavera — o velho pronunciou a data com uma alegria contida, quase como se a simples lembrança da data lhe alegrasse até a alma.
O menino folheou o diário até encontrar a página certa e começou a ler:



“23 de Setembro de 1950

Querido diário,



Os doces lábios dela ainda permanecem em minha memória. Não vou começar contando como foi o dia, prefiro deixar nessa página os meus sentimentos. Sinto-me leve e mais velho. Não sei ao certo como duas semanas puderam me amadurecer tanto, mas acontece que aconteceu. Aqueles cabelos loiros e aqueles olhos azuis... O cheiro de jasmin... Eu não consigo parar de pensar nisso! Eu a amo. Apesar de ter negado isso por essas duas semanas, hoje eu finalmente admiti. Ela é a mulher da minha vida!
Vou contar como foi meu dia. Você não deve estar entendendo muita coisa e para dizer a verdade, nem eu sei se estou entendendo muita coisa. Faz cerca de duas semanas que estou conversando com aquela garota que conheci na matinê de domingo. E hoje... Bom, ela me beijou. Foi algo bem rápido e eu nem pude falar com ela. Ela só me beijou e saiu correndo enquanto os ventos balançavam o cabelo e as roupas dela. Mas... Sei lá. Foi algo mágico, sabe? Meu coração batia tão forte e eu não conseguia pensar em mais nada e em mais ninguém. Eu só via ela. Acho que é isso que as pessoas chamam de amor, pelo menos foi isso que li nos livros de romance de minha mãe.”


O garoto terminou de ler aquela página do diário e ficou olhando para o velho sem entender. Para o menino, aquela história não tinha nem pé e nem cabeça, mas para o velho... Era só olhar para a expressão dele para ver o quanto ele estava feliz. Era como se ele estivesse revivendo aquele dia novamente.
— Menina madura — disse ele, sua voz até parecia mais forte — Olhos de cor da piscina e tão profundos quanto. Se importa se ler para mim o dia 25 de dezembro, meu filho?
O garoto folheou, obediente, até a página que o velho havia pedido. Nela havia uma pequena rosa. Não entendeu ao certo o que ela significava, mas não perdeu tempo se perguntando. Preferiu ler para saber.





“25 de dezembro de 1950



Não sei ao certo se é correto colocar a data como dia 25, já que já são praticamente 3 da manhã do dia 26. Mas... Acho que como tudo o que vou relatar aconteceu no dia 25 vou deixar desse jeito.
Ela me deu um relógio de ouro, garota rica, sabe? E eu apenas uma rosa. A rosa que roubei do jardim do vizinho. Sinto-me um pouco frustrado por não ter conseguido comprar nada decente para ela, mas ela pareceu amar. Beijou-me daquela forma doce e viciante que até agora me provoca verdadeiros choques elétricos. E eu fiquei me justificando feito um garoto bobo enquanto ela ria e me agradecia.
O que me agrada é o fato de nossa relação estar se aprofundando cada vez mais. Sei que somos jovens, eu com apenas dezesseis e ela com apenas quinze, mas acho que quero me casar com ela. Não sei qual a idade correta para isso e se o pai dela vai concordar, mas vou fazer o possível para que isso se torne realidade.”




O menino terminou de ler e ficou olhando para o velho em busca de outro pedido, mas o velho apenas encarava o teto com um olhar perdido em alguma época do passado.
— Bons tempos — disse ele quase para si mesmo — Daria o que me resta de vida para ver o rosto dela novamente. Mas... não me resta muito para essa troca, resta?
A voz do velho foi ficando fraca pouco a pouco.
— Acho que não tenho mais tempo para o relato de mais um dia... Uma pena, uma pena — e fechou os olhos enquanto esperava pela morte.
Não tardou a vir.

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