Fiquei olhando a
maldita larva passando pelo rosto do homem. Furava um buraco, saía por outro.
Dava para ver o osso do indivíduo quando ela invadia o pequeno túnel. Lenta e
irritantemente. Eu desejava avisar. Cara,
tem um bicho no seu rosto. Você não percebe? Mas era quase como falar sobre
um feijão no dente. O rapaz poderia se constranger. Ou ficar irritado. Vai ver
era até um animal de estimação. Não dava para entender muito bem esses mortos.
— Então, Thomas, eu quero que você
preencha esses relatórios para mim até amanhã.
A sua boca abria, e o mau hálito invadia
o meu espaço físico. Os dentes sujos. Pretos. Cáries em todos os lugares. As
mãos tocavam o meu ombro em um gesto cúmplice. Dedos finos, sem carne.
— Você está me entendendo?
Acho
que vou comprar uma escova de dente para você, cara. Pensei quase alto. Mas
não falei nada. Fiquei olhando para o meu chefe e acenei que sim com a cabeça.
Compreendido. Relatórios. Amanhã. Checado.
Me deixou em paz e foi para a sua
sala privada. O cheiro podre o acompanhou, mas não saiu em sua totalidade. —
Cara nojento — resmunguei para mim mesmo. A Rita começou a rir e disse que
concordava. Nem tinha percebido que estava ali. Ela era simpática, sempre
tentava se aproximar. O problema é que era um esqueleto e seria estranho demais
começar uma amizade com uma caveira. Então eu a tratava de maneira
profissional. Recusava os convites para os diversos eventos e só. Já estava
acostumado mesmo. Sempre tive jeito para evitar as pessoas. Aprendi em casa.
Meus pais morreram quando eu tinha apenas cinco anos e continuaram a me
visitar. Aí eu fugi depois de alguns meses. Mas todo mundo estava morto. Tive
que aprender a conviver com isso.
Fiz os relatórios, deixei na mesa do
meu chefe quando ele não estava e saí. Um cachorro sem olhos corria atrás de um
osso na rua. Tentou brincar comigo, mas eu apenas me desviei. Ele mordeu a
minha mão e arrancou um dedo. Não sangrou. Fiquei olhando para a ferida. A
forma como estava decomposta. A maneira como parecia podre. Cheirei. E era o
pior dos odores. Parecia ser de anos, décadas. O osso frágil. Tive vontade de
gritar.
Eu
era um deles? Um carro buzinou insistentemente pedindo que saísse da frente. Eu
estava paralisado no meio da avenida. Encarei o motorista, atônito. Como um
morto vivo. Cheiro. Cheiro. Cheiro. O
perfume mais podre. Quis me jogar em um poço. Sair daquela cidade de mortos.
Estava preso em um mundo que não queria fazer parte.
—
Sai da frente, cara!
Corri.
Todos aparentavam ter medo de mim. Estavam vivos agora. Já eu morria como um
vivo. O único anormal decomposto. Os outros viviam como mortos enquanto larvas
invadiam o chão. Subiam pelas pernas de todos.
Ninguém
percebia. Só eu.
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