27 de agosto de 2012

Vivo Morto


           Fiquei olhando a maldita larva passando pelo rosto do homem. Furava um buraco, saía por outro. Dava para ver o osso do indivíduo quando ela invadia o pequeno túnel. Lenta e irritantemente. Eu desejava avisar. Cara, tem um bicho no seu rosto. Você não percebe? Mas era quase como falar sobre um feijão no dente. O rapaz poderia se constranger. Ou ficar irritado. Vai ver era até um animal de estimação. Não dava para entender muito bem esses mortos.

            — Então, Thomas, eu quero que você preencha esses relatórios para mim até amanhã.
            A sua boca abria, e o mau hálito invadia o meu espaço físico. Os dentes sujos. Pretos. Cáries em todos os lugares. As mãos tocavam o meu ombro em um gesto cúmplice. Dedos finos, sem carne.
            — Você está me entendendo?
            Acho que vou comprar uma escova de dente para você, cara. Pensei quase alto. Mas não falei nada. Fiquei olhando para o meu chefe e acenei que sim com a cabeça. Compreendido. Relatórios. Amanhã. Checado.
            Me deixou em paz e foi para a sua sala privada. O cheiro podre o acompanhou, mas não saiu em sua totalidade. — Cara nojento — resmunguei para mim mesmo. A Rita começou a rir e disse que concordava. Nem tinha percebido que estava ali. Ela era simpática, sempre tentava se aproximar. O problema é que era um esqueleto e seria estranho demais começar uma amizade com uma caveira. Então eu a tratava de maneira profissional. Recusava os convites para os diversos eventos e só. Já estava acostumado mesmo. Sempre tive jeito para evitar as pessoas. Aprendi em casa. Meus pais morreram quando eu tinha apenas cinco anos e continuaram a me visitar. Aí eu fugi depois de alguns meses. Mas todo mundo estava morto. Tive que aprender a conviver com isso.
            Fiz os relatórios, deixei na mesa do meu chefe quando ele não estava e saí. Um cachorro sem olhos corria atrás de um osso na rua. Tentou brincar comigo, mas eu apenas me desviei. Ele mordeu a minha mão e arrancou um dedo. Não sangrou. Fiquei olhando para a ferida. A forma como estava decomposta. A maneira como parecia podre. Cheirei. E era o pior dos odores. Parecia ser de anos, décadas. O osso frágil. Tive vontade de gritar.
Eu era um deles? Um carro buzinou insistentemente pedindo que saísse da frente. Eu estava paralisado no meio da avenida. Encarei o motorista, atônito. Como um morto vivo.  Cheiro. Cheiro. Cheiro. O perfume mais podre. Quis me jogar em um poço. Sair daquela cidade de mortos. Estava preso em um mundo que não queria fazer parte.
— Sai da frente, cara!
Corri. Todos aparentavam ter medo de mim. Estavam vivos agora. Já eu morria como um vivo. O único anormal decomposto. Os outros viviam como mortos enquanto larvas invadiam o chão. Subiam pelas pernas de todos.
Ninguém percebia. Só eu. 

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