10 de janeiro de 2012

Escuro sem luz

O soro estava espetado na veia, e o condutor pregado no pulso com um esparadrapo. Olhei para aquilo e senti enjôo, então desviei a vista para os olhos dele, embora fosse a última pessoa que eu gostaria de ver. Reparo naquele azulado, que antes me encantara. Agora parecia feito de gelo. Eu já não reconhecia mais quem estava sob aquela carcaça. Perguntava-me como tínhamos chegado ali, e aí eu me lembrava de que a culpa era todo dele. A onda de ódio voltava a invadir. Os batimentos cardíacos se aceleravam, e Matheus analisava o aparelho preocupado, achando que o meu coração poderia ter algum problema. A grande questão que não entendia, é que a possibilidade de dar algo errado não estava naquele órgão, e sim um pouco mais embaixo. No meu útero. Coloquei a minha mão sobre a barriga, de forma inconsciente. Segurei as lágrimas. Era a única parte dele que eu ainda amava, e em breve, morreria. Depois não teríamos mais nada para conversar. O cretino provavelmente tentaria manter contato, mas eu nunca olharia para aquele rosto novamente.




— Vai dar tudo certo, Julia.

Tive vontade de dar uma resposta bem dada. Do tipo... Vai se ferrar, seu filho da puta, porque quem vai se sair bem é você. Ficará com a sua esposa vagabunda e com a sua vidinha de rico no alto Leblon. E eu vou continuar fazendo o curso noturno de Direito na UFRJ, enquanto trabalho na mesma lanchonete que você costumava freqüentar de manhã e a tarde. Não vai ser o senhor que ficará com traumas psicológicos durante um bom tempo, por matar o próprio filho e por ter se enganado em um relacionamento!
— Claro que vai — respondi, mas é óbvio que não notou o sarcasmo. Nunca percebia nada, nem mesmo a sujeira do próprio umbigo.

Tínhamos nos conhecido em meu trabalho. Servi um café expresso, e perguntou o meu nome. Eu apenas disse para ele olhar o meu crachá. Depois disso, voltou todos os dias. Sempre questionava algo pessoal. Você gosta de música? Já conheceu o Nordeste? Qual curso de faculdade faz? De onde veio? De início eu não falava nada, apenas informava que a única coisa que iria responder era sobre o recheio do novo sanduíche. Porém, acabei aceitando pela persistência, e quando percebi, estávamos saindo juntos ao final do mês, em um restaurante chique de comida italiana.
Ele só confessou que era casado depois do primeiro mês de namoro. Prometeu que ia largar a mulher e foi no meio dessas promessas vazias, que acabei engravidando. Fiquei feliz, porque vi ali a chance de construir uma família. Eu iria me graduar ao final do semestre, e poderia trabalhar até mesmo com ele, já que era advogado. 

Quando contei a notícia pelo telefone, me levou para jantar, e pensei que se tratava de uma comemoração. Mas sugeriu um aborto. Disse que as coisas em casa estavam muito complicadas e que eu era muito nova para ter um filho. 28 anos. Informou que conhecia uma clínica clandestina muito segura, e que ele mesmo custearia a cirurgia.
Acho que sempre fui muito fraca e ainda sou, porque aceitei.

— O médico disse que o procedimento é rápido. Você estará acordada em algum tempo.
Observei a enfermeira dando-me a anestesia, e fechei os olhos, preparando-me para dormir. Senti o seu beijo em minha boca, e tive vontade de cuspir na cara dele. Como sempre, não passou da vontade. Meu corpo foi ficando mole aos poucos, e acordei ainda zonza, com Matheus ao meu lado.

— Deu tudo certo, viu? — seu sorriso era de alívio, e eu tinha certeza que se devia ao fato de seu pescoço estar a salvo.
— Agora você pode ir embora, se quiser. Não é isso o que deseja? — as palavras saíram da minha boca antes que eu pudesse puxá-las de volta. Ele olhou para mim, assustado, e por um momento não teve o que dizer. Porém, encontrou as frases certas, como o bom advogado que o era.

— Meu amor, eu te amo. Não acredita nisso?
Não havia mais porque acreditar.

— Não, Matheus. E por favor, não quero brigar. Estou muito cansada — falei, olhando para a minha barriga e desculpando-me mentalmente por ter o assassinado. Deus, eu era um monstro! Se minha família descobrisse, eu provavelmente seria deserdada. Aborto! O maior dos crimes — Você pode ir embora, por favor?
Algo bem no fundo de mim, desejava que eu estivesse errada. Que houvesse uma razão para que tomasse essa atitude. E aí, dentro de uns dois meses, quando tudo se acertasse, estaríamos vivendo juntos. O problema é que não tenho o costume de errar e isso é uma droga. Ele se levantou, deu-me um beijo na minha bochecha, como se tivesse se despedindo de uma amiga qualquer em uma situação normal, e deu as costas. Nessa hora, coloquei a minha mão direita sobre o meu abdome, e senti as lágrimas caindo. Eu nem tivera a chance de saber se era menino ou menina. Mas já tinha comprado um sapatinho vermelho, que pretendia ter exibido na noite da notícia. Ficou na minha bolsa, largado, e tive medo de tirá-lo de lá e acabar caindo em prantos. Mesmo com tal temor, me desmanchei em gotas.

0 comentários:

Postar um comentário