Fotógrafo desconhecido
1
Eu me considerava apaixonada, e pensava que nada nunca ma faria esquecê-lo. Aquela paixão que estava na minha mente para ser esquecida fazia cerca de dois anos, havia me preenchido de tal forma, que a simples troca de olhar com o sexo oposto era considerada traição. As pessoas nunca entenderam muito bem o porquê disso, já que nunca cheguei a namorar com o cara de verdade. O engraçado é que eu também não sei, mas mesmo assim levava aquela mania louca para frente.
Deixei de beber, de sair com meus amigos e parei de usar certas drogas rotineiras. Os livros já se empoeiravam nas prateleiras, e a escrita, que até dois anos atrás era considerada a carreira perfeita para mim, já não era mais meu passatempo constante. Tudo o que eu fazia era basicamente viver mecanicamente. Ia para a faculdade, e ficava no campus até cerca de 17 horas, depois voltava para casa, via um pouco de seriado, estudava, e dormia cedo.
Aos poucos alguns amigos — que na verdade não foram amigos nunca — pararam de me ligar, mas os verdadeiros continuavam a insistir o tempo todo. Até que houve um dia, na semana de aniversário da minha melhor amiga, que não pude dizer não a um convite que ela me fez.
— Minha mãe vai bancar a viagem, por favor, vá. Vai eu, você, e as três colegas da minha turma que te falei há um tempo atrás. Vamos para Búzios.
Não pude deixar de sorrir, quando ela mencionou o nome da cidade. Lembrei-me por um momento de uma viagem que tivéramos anos atrás, quando eu ainda bebia e ficava com qualquer um que aparecia na minha frente, desde que fosse bonito. Ela também pareceu reviver a lembrança, e disse:
— Não precisa ser igual aquela vez. Juro que não vou te pressionar a voltar a beber ou a ficar com algum garoto. Não aprovo sua mudança de vida, mas viva no seu tempo.
Relutei, voltando meus pensamentos a ele. Fazia muito tempo que eu não o via, desde que me dispensou. Depois daquilo, parei de sair com o meu grupo de amigos, porque não suportava a ideia de vê-lo.
— Faz muito tempo que não saimos, desde a história de você com o Gustavo.
O nome me fez tremer, e abracei meus próprios braços, com a dor da simples menção. Ela suspirou com o meu sofrimento mudo, e se sentou ao meu lado, abraçando-me, como há muito tempo não o fazia. Eu não dava mais espaço para qualquer tipo de encontro, já que estava em meu próprio casulo, mas naquela noite ela havia ido até meu apartamento sem me comunicar, só para fazer o convite.
— Dois anos, Sarah — disse — Não são dois dias, nem dois meses. Vamos, você precisa disso.
Eu sentia que a mantinha em um certo monólogo. Desde que chegara, meia hora antes, perguntou como eu estava, como iam as coisas e esse tipo de coisa. Como as respostas eram muito breves, acabou indo direto ao assunto, o convite. E estava nisso, já que eu não parecia esboçar reação alguma. Era como se tivesse perdido a capacidade de falar, ou coisa do gênero.
— Vou pensar — falei, por fim — Posso te ligar mais tarde?
Os olhos dela foram dos meus ao chão, como se no fundo soubesse a resposta. Eu nunca iria, nunca sairia. Pelo menos não tão cedo. O que havia de errado comigo, afinal?
— Eu troquei meu número de celular, então toma aqui o novo — entregou-me um papel pequeno, e se levantou — Por favor, tente me avisar sua resposta até amanhã, porque se você não for, vou ter que chamar outra pessoa.
A ameaça há um tempo atrás teria me feito dar a confirmação na hora. Eu nunca perdia uma festa, ou viagem. Minha mãe vivia reclamando que eu não dava atenção para ela, já que vivia saindo. Agora, porém, além de não lhe dar atenção, também não saia. Era um perfeito robô que se focava apenas em passar no maldito curso de Direito.
— Vou te ligar — prometi — Hoje mesmo te dou a resposta.
Levantei-me, e abri a porta da casa. Por mais que ela não esboçasse sinais de que estivesse indo embora, estava claro que a conversa já estava terminada. Passou pela porta, me abraçou, e foi embora.
Escutei minha mãe me chamando de dentro da casa, e fui rapidamente até onde ela se encontrava. Estava sentada no sofá da sala, e assistia a uma novela qualquer da Globo. Ela pediu que eu me sentasse, e eu o fiz, um pouco surpresa. Fazia muito tempo que não falávamos uma com a outra. Desde a noite de anos atrás, quando disse para não se meter em minha vida pessoal, porque eu já tinha idade suficiente para cuidar de mim mesma.
— O que a Laura queria? — perguntou, como quem não quer nada.
— Chamou-me para ir para Búzios, a mãe dela vai bancar a viagem para os convidados. É o presente de aniversário dela.
— Vão ficar quanto tempo lá?
— Nessa semana de Março.
Ela assentiu, parecendo pensar por um tempo. Concentrou-se no que acontecia na novela, mas não parecia de fato prestar muita atenção. Parecia perdida em seus próprios pensamentos. Notei o quanto ela havia envelhecido. Suas rugas, antes não muito perceptíveis, já tomavam conta do seu rosto. Sua aparência era de estar cansada, como se só o ato de viver já era exaustante. Odiei-me por um momento por ter me afastado, mas a lamentação não durou muito tempo, já que ela logo disse:
— Eu deixo você ir, se quiser — disse.
Achei aquilo um pouco engraçado. Eu viajava sozinha mais ou menos desde os catorze anos, quando comecei a freqüentar os carnavais de rua das cidades vizinhas. Aos dezesseis fiz a minha primeira viagem de avião sozinha, e ela nem ligou. Então por que estava dando essa permissão repentina? Eu nem sequer precisava pedir, já que meu estágio era suficiente para sustentar meus luxos e até mesmo um apartamento, se tivesse vontade de morar sozinha.
— Ah, obrigada, mãe. Mas acho que não vou.
Os olhos dela percorreram meu rosto por um momento, como se procurasse algo para dizer, mas as palavras não vieram. Éramos totais estranhas, tudo culpa minha. Subitamente entendi que a permissão não se tratava apenas de me deixar ir, e sim de um encorajamento.
— Tenho trabalho nessa semana, sabe como é — procurei justificativas.
— Posso conversar com o seu tio, tenho certeza que ele não vai se importar — ela parecia sem esperança de que eu fosse querer.
— Vou pensar, porque também tem a faculdade.
— Você está muito bem, eu vi suas notas.
Ela estava me pressionando, e aos poucos as desculpas tornavam-se escassas. Chegou a um ponto que tive que dizer a verdade, a não de querer ir. Ela me olhou com aqueles olhos que pareciam ler a minha alma, e tentou mais uma vez:
— Então faça isso por mim. Você não tem ideia de como é te ver sofrendo tanto dia após dia.
Compreendi o quão doloroso devia ser. Percebi, naquele momento, que as rugas não se tratavam apenas do trabalho que ocupava tempo integral do dia, mas sim por minha causa. Afinal, que mãe gostaria de ver um filho afundar-se em um mundo próprio de solidão e desespero? Nenhuma que eu conhecesse. Diante daquele pedido tímido e sem esperança, não pude dizer não.
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