23 de março de 2015

Os dois dali

       Ela se apoiava sobre os braços, equilibrando a carcaça e tudo, de maneira a não cair ou despencar daquele banco alto e confuso, feito para que as pessoas tropeçassem no próprio corpo. Nem sabia ao certo o que beber. Já perdera os caprichos há muito. Um conjunto ausente de qualquer vaidade, repleto de tudo que não fosse amor próprio. Só uma falta de autoconfiança. O espartilho apertado, disfarçando uma barriga quase em fuga. A maquiagem borrada nos olhos, na boca, no nariz, na pele toda. A maneira como enxergava o nada e ficava a olhar, assim, perdidamente, como alguém que não tinha nada mais para ver. 
        E atrás, um homem desses gordos observava, sem também distinguir qualquer silhueta. Só via as curvas e pensava em suas fantasias profundas, que se borravam na ausência de consciência. Só tinha a certeza de desejar um corpo, o que fosse, uma coisa qualquer para entrar e fingir amar. Era um desses solitários, que nunca conhecera o amor, e se escondia em uma face acabada, de alguém sofrido por sofrer demais. E ele, tão infeliz, mas tanto, não sabendo nem ao certo o que era qualquer felicidade, bebia e bebia, sem sentir pena da pobre mulher também desconhecida da alegria, que só pensava mesmo era em qualquer coisa, menos em ir para casa e chorar. Porque as lágrimas cristalinas borravam a maquiagem de tal maneira, que ela ficava ainda mais feia. Aí ela retirava o espartilho, olhava para as gorduras, e se odiava como ninguém jamais a odiou. 
        O homem, então, levantou-se quando a viu vomitar a bebida transparente, reveladora do quanto tudo era sem. A maneira como não tinha nada a oferecer, com exceção de um buraco, uma boca, uma fala, um gemido, um choro, uma dor. E ele pegou em seu cabelo, e ela chorou, porque fazia tempo que ninguém tinha feito tamanha gentileza. Só se lembrava de sobreviver, assim, pelos becos. O corpo de cinquenta de alguém que se sentia tão mais velha... 
        Eles não falaram nada, porque eram desses, tão marginalizados por um mundo próprio, que acabaram perdendo a capacidade da linguagem. Apertaram-se em um banheiro imundo, repleto de pegadas, urina, papéis e uma nojeira toda. Estavam acostumados com aquela desumanidade, porque acabaram se desumanizando. Sentiam-se bichos em meio àquela vida cruel interna e externa, que sei lá... E eles se beijaram. O gosto de vômito misturado com o gosto da bebida barata. Ela fechava os olhos, mas estava mesmo era acordada. Sentia-se viva, o desejo despertava-a de um torpor profundo, desses que a gente sente, ou pensa sentir, por um tempo de desespero, mas depois acaba. O dela passou ali, naquela porqueira de lugar, nos braços de um homem gordo, barbudo, sem um tostão no bolso. Mas a mulher não se importava, porque não tinha nada a oferecer. Talvez só mais um pouco do líquido transparente ou algo para que ele se enfiasse e fingisse, por um momento, ter alguém para amar. 
        E os toques, as bocas, foram conduzindo-os a se espremerem na parede, a tirarem as roupas, a ignorarem todos os odores que não fossem os próprios fedidos, mas ainda assim próprios. Pressionados contra uma parede imunda, os dois se amaram sem saber os nomes, a idade, o rosto. Porque fechavam os olhos e imaginavam, naquele corpo do outro, os personagens de suas fantasias mais profundas. E quase, naquele momento, atingiram a felicidade. Mas a verdade mesmo é que não passava de uma coisa carnal, dessas que não tiram as dores, mas enganam o corpo, mesmo que por um momento. E ele suspirou, ela também. Abraçaram-se de uma maneira intensa, como dois amantes apaixonados fazem, depois daquele gozo que consuma o amor profundo. Mas, no caso dos dois, consumava mesmo era o fim de uma experiência que não levaria a nenhuma outra. Apenas acabaria, assim, rápido, e os dois continuariam a seguir pelos becos, solitários, sem entender muito bem que poderiam ter permanecido juntos. Mas a vida não é tão simples assim, e eles sabiam disso. Então preferiram continuar a viver à maneira deles, vomitando líquidos transparentes por aí. 

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