30 de julho de 2014

A história de Pequim

Quando os olhos dizem, já não há mais o que mentir. Sentam-se. Conversam. Um a um, vão desvendando os pontos, as fraquezas, os passados. Dizem que ambos podem ficar anos sem se falar, mas quando existe o conto não há volta. Jogam frases, risos e histórias. Constroem, enfim, os enredos para contar, quando se conhecem uma vez mais, após anos afastados, e assim se reconhecem.
           Tratam-se de pessoas diferentes, entretanto. Uma aprendeu a falar mandarim e agora faz negociação com chineses. Ela odeia aquele povo e acha divertido falar português perto dos seus amigos brasileiros que moram em Pequim, especialmente para xingar os tais de olhos puxados. Uma espécie de piada interna. Até que, finalmente, um dos chineses entendeu o que ela disse e a história ficou melhor ainda. O desenrolar envolveu uma série de xingamentos, bebidas jogadas para o alto e mesas socadas. Os amigos saíram correndo, sem pagar a conta, e eis que virou história.
            O outro, por outro lado, não sabe bem que rumo levar. Já lavou carros, trabalhou em lojas, começou um negócio de cookies que não deu certo e até trouxe sapatos de Pernambuco para vender. Agora trabalha com artistas, fotografa-os, produz vídeos e dá media training. Suas histórias giram em torno das gafes que todos eles contam. Um dia, ele jurou, escreveria a biografia não autorizada dos 10. Seria esse título mesmo: “Biografia não autorizada dos 10”. A pessoa ficaria curiosa e então perceberia que se tratavam de pequenas histórias de todos os artistas com os quais ele trabalhou.
            “Já pensou em escrever um livro?” ele pergunta, enquanto termina a cerveja e pede outra. Na mesa de bar, os olhares se esbarram, as mãos se tocam, mas as fronteiras são grandes demais e se afastam.
            “Um livro?” ela ri, acende um cigarro e joga fumaça para o alto. As unhas pintadas de preto, o cabelo curto e o sobretudo dão a ela um ar muito mais alternativo do que a realidade. “Daniel, faça-me o favor. Eu trabalho com números e chineses, fiz engenharia. A coisa mais sem inspiração do mundo. Às vezes você tem mania de achar que sou artista! Eu lá tenho tempo para escrever.”
            Ele ri. Sei lá porque fez a pergunta. Talvez porque tivesse tomando coragem para escrever alguma coisa. Sempre teve vontade. Mas aí acabava ficando com preguiça e desistia da ideia, queria alguém que o encorajasse e que o obrigasse a colocar as palavras para fora. Pensou, por um momento, que até poderia ser interessante ter a Luiza como protagonista. “Aventuras de uma negociadora chinesa.”
            “Você se deu muito bem, Luiza. Sempre soube o que quis.”
            Ela gargalha. “Meu amor, a gente nunca sabe o que quer.” Foi a resposta dela. “Mas às vezes temos preguiça demais para procurar.” “Lu, você é feliz?” “Felicidade é um conceito amplo, não acha? Existem momentos.” “É, você tá certa. Sabe, eu ainda tô procurando.” “O que?” “O que eu quero.” “Nem uma ideia do que quer?” “Várias e nenhuma”
            Ela paga a conta, porque insiste. Os dois vão para o apartamento e dormem em quartos separados. É a primeira vez e a primeira noite dele em Pequim e já estava achando aquela cidade uma bizarrice. Pensou sobre os tais momentos que a Luiza mencionou. Será que ela tinha muitos de felicidade? E ele, tinha?
            Dormiu sorrindo ao pensar no peso que levou de Pernambuco até o Rio de Janeiro, aquela mala lotada de sapatos diferentes de couro. Vendeu todos numa praça. Que história!
            Agora ele já tinha um momento em Pequim. E com certeza se tornaria um enredo muito atrativo, especialmente a ideia de xingar os chineses em português. Isso sim fora muito engraçado.
            Dormiu pensando em Luiza. Fronteiras mentais, físicas e territoriais. Luiza, por sua vez, pensou em Daniel. Quantos pensamentos ocultos existiriam entre os dois?

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