Quando os olhos dizem, já não há mais o que
mentir. Sentam-se. Conversam. Um a um, vão desvendando os pontos, as fraquezas,
os passados. Dizem que ambos podem ficar anos sem se falar, mas quando existe o
conto não há volta. Jogam frases, risos e histórias. Constroem, enfim, os
enredos para contar, quando se conhecem uma vez mais, após anos afastados, e
assim se reconhecem.
O outro,
por outro lado, não sabe bem que rumo levar. Já lavou carros, trabalhou em
lojas, começou um negócio de cookies que não deu certo e até trouxe sapatos de
Pernambuco para vender. Agora trabalha com artistas, fotografa-os, produz
vídeos e dá media training. Suas histórias giram em torno das gafes que todos
eles contam. Um dia, ele jurou, escreveria a biografia não autorizada dos 10.
Seria esse título mesmo: “Biografia não autorizada dos 10”. A pessoa ficaria
curiosa e então perceberia que se tratavam de pequenas histórias de todos os
artistas com os quais ele trabalhou.
“Já
pensou em escrever um livro?” ele pergunta, enquanto termina a cerveja e pede
outra. Na mesa de bar, os olhares se esbarram, as mãos se tocam, mas as
fronteiras são grandes demais e se afastam.
“Um
livro?” ela ri, acende um cigarro e joga fumaça para o alto. As unhas pintadas
de preto, o cabelo curto e o sobretudo dão a ela um ar muito mais alternativo
do que a realidade. “Daniel, faça-me o favor. Eu trabalho com números e
chineses, fiz engenharia. A coisa mais sem inspiração do mundo. Às vezes você
tem mania de achar que sou artista! Eu lá tenho tempo para escrever.”
Ele ri.
Sei lá porque fez a pergunta. Talvez porque tivesse tomando coragem para escrever
alguma coisa. Sempre teve vontade. Mas aí acabava ficando com preguiça e
desistia da ideia, queria alguém que o encorajasse e que o obrigasse a colocar
as palavras para fora. Pensou, por um momento, que até poderia ser interessante
ter a Luiza como protagonista. “Aventuras de uma negociadora chinesa.”
“Você se
deu muito bem, Luiza. Sempre soube o que quis.”
Ela
gargalha. “Meu amor, a gente nunca sabe o que quer.” Foi a resposta dela. “Mas
às vezes temos preguiça demais para procurar.” “Lu, você é feliz?” “Felicidade
é um conceito amplo, não acha? Existem momentos.” “É, você tá certa. Sabe, eu
ainda tô procurando.” “O que?” “O que eu quero.” “Nem uma ideia do que quer?” “Várias
e nenhuma”
Ela paga
a conta, porque insiste. Os dois vão para o apartamento e dormem em quartos
separados. É a primeira vez e a primeira noite dele em Pequim e já estava
achando aquela cidade uma bizarrice. Pensou sobre os tais momentos que a Luiza mencionou. Será que ela tinha muitos de felicidade? E ele, tinha?
Dormiu
sorrindo ao pensar no peso que levou de Pernambuco até o Rio de Janeiro, aquela
mala lotada de sapatos diferentes de couro. Vendeu todos numa praça. Que
história!
Agora
ele já tinha um momento em Pequim. E com certeza se tornaria um enredo muito
atrativo, especialmente a ideia de xingar os chineses em português. Isso sim
fora muito engraçado.
Dormiu
pensando em Luiza. Fronteiras mentais, físicas e territoriais. Luiza, por sua
vez, pensou em Daniel. Quantos pensamentos ocultos existiriam entre os dois?
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