9 de dezembro de 2009

Morto vingativo

O coveiro estava cansado daquele dia a dia mais sem o que fazer. Era todo dia a mesma coisa... Pegar um corpo e enterrar. O esforço físico lhe valia algum corpo, mas nada se comparado com o tédio que sentia. E ali estava ele, na mesma rotina torturante. Jogava terra sobre um caixão de uma daquelas famílias ricas... Do tipo que gastava uma fortuna com o parente querido, comprando para eles caixões de luxo. Não entendia o porquê das pessoas se preocuparem tanto com aquele tipo de coisa.

E o mais engraçado é que compraram o caixão, mas não compareceram no enterro. O padre nem sequer celebrou a missa e apesar de ter facilitado o trabalho para ambos, não deixava de ser esquisito.

— Tem gente que acha que pode compensar presença com presentes... — o coveiro se viu realizando uma de suas manias, falar com os mortos — Sei bem como se sente, já vi muita gente desse tipo. Vi tanto que hoje em dia prefiro viver sozinho, sem amigos. Vá por mim, é muito mais gratificante.

Não se surpreendeu quando o silêncio reinou mais uma vez sobre o cemitério. O único som possível de ser escutado era o da rua movimentada que não estava muito longe daquele lugar do cemitério e do cantar de alguns passarinhos. Tirando isso... Parecia mais um lugar morto. O que de certa forma acabava sendo.

O coveiro terminou de jogar a terra sobre o caixão e começou a bater sobre esta, deixando-a lisa e logo depois... A lápide. Após isso podia dar seu trabalho por concluído.

— Prontinho — disse enquanto se apoiava na árvore próxima dali para tentar aliviar um pouco do cansaço causado pelo esforço físico elevado — Terminei.

No entanto, a falta de resposta desta vez não aconteceu... Do nada, um som estranho começou a ser ouvido da terra. Como se fosse uma respiração ofegante, mas mais monstruosa e depois do som, veio a fala que saiu em um tom velho, desafinado.

Obrigado.

A primeira coisa que sentiu foi a onda de medo. Afinal, não era comum que mortos falassem. Era assustador, isso sim. Mas depois lhe caiu a tão conhecida onda de razão. Não, aquilo não podia estar acontecendo. Mortos não falavam... Podiam falar em um daqueles contos que tanto gostava de Edgard Allan Poe, mas ali a coisa mudava... Era a vida real, afinal. Onde imperava a razão.

— É... Acho que eu deveria parar de falar com os mortos... — refletiu consigo mesmo, incapaz de pensar ao invés de falar.

Um riso saiu da lápide e desta vez o coveiro teve certeza que estava ficando louco. Precisava trocar de emprego... Sempre soube disso, mas a preguiça de conseguir alguma qualificação que lhe permitisse imperava quando surgia aquele pensamento e aí... Puff. Preferia deixar que aquele pensamento sumisse ao invés de ter algum trabalho.

— Não faça isso, meu jovem... Os mortos gostam. Sentem que possuem alguma companhia.

Certo, certo... Então não devia estar ficando louco. Não podia estar ficando louco. Tomava seus remédios direitinho... Estava indo ao psicólogo semanalmente. Não podia estar ficando louco!

— Companhia, é? Cara, você está morto! Para de falar! — o coveiro se viu gritando enquanto se sentava no chão, desorientado. Não iria fugir, precisava enfrentar aquela sua onda de loucura.

— Que preconceito com os mortos, não? Sou um diferencial, entende? Normalmente mortos nunca respondem, a não ser que sejam interrogados por aqueles malditos médiuns. O gentinha ruim. Mas eu prefiro responder... Afinal, fui sozinho assim como você. O caixão...? Eu mesmo o paguei com meu seguro de vida.

Você fala demais para um morto — o coveiro se viu respondendo.

Outra risada espectral... Mas essa não o deixou amedrontado como de início. Apenas foi... Esperada.

— Eu estou ficando louco? — o coveiro perguntou, como se a resposta fosse lhe confortar alguma coisa.

— Não, não está. Com o tempo você se acostuma com a minha falação. Vou te pentelhar nas próximas vezes. Não gosto de ser sozinho, sabe? E nem os mortos estão querendo me fazer alguma companhia.

O coveiro respirou fundo. Mas que velhinho mais... Chato! O cara parecia um daqueles meninos irritantes que conhecera no ensino fundamental, que se esforçavam para ser legais e bla bla bla. Que carência de amigos.

— Na verdade prefiro trabalhar em silêncio — disse enquanto pegava sua pá e começava a andar na direção do seu armário — Acho que já disse isso antes.

O morto não respondeu, como o coveiro pensou que fosse fazer. Apenas ficou em silêncio e isso de fato o agradou. Talvez o mais fácil para terminar com aquela ilusão fosse simplesmente ignorá-la. Todo mundo que era ignorado ficava quieto e o mesmo devia acontecer com aquele maldito morto.

Guardou a pá no armário e voltou para analisar seu trabalho. Seu chefe muitas vezes era irritante de tão perfeccionista.

— Ser ignorado durante minha velhice é uma coisa... Todos meus familiares me deixaram e tal. Agora... Por um coveiro?! De certa forma meu empregado? Isso eu não aturo.

O tom saiu diferente desta vez. Seco... Vingativo. E ao identificar essa característica, o coveiro sentiu um arrepio lhe subir pela espinha.

— Não fiz para ofender... Eu apenas gosto de ficar sozinho — se viu justificando como uma criança amedrontada justificava suas travessuras ao ser descoberta.

E desta vez veio um riso sarcástico... Sem crença.

— Não fez para ofender... — o morto repetiu — Com certeza não fez, mas ofendeu. E aí é que entra a famosa raiva dos mortos.

O coveiro não teve tempo para interpretar o real significado da frase, já que de uma forma mágica, a árvore que estava atrás de si caiu bem ao seu lado e depois algumas lápides de outros mortos começaram a levitar ao seu redor, de forma ameaçadora.

— Espero que levem essa lição, companheiros! Todos sabem muito bem que um morto vingativo é bem mais poderoso e eu sou muito vingativo. Ah, se vou. Vou conseguir algum amigo, nem que para isso tenha que ameaçar um por um.

As lápides começaram a girar formando uma espécie de redemoinho ao redor do coveiro, deixando-o incapaz de realizar qualquer tipo de ato de fuga. E então, todas se aproximaram do coveiro ao mesmo tempo, batendo neste com uma velocidade e violência absurda. Não demorou muito para que o coveiro se juntasse aos mortos naquela pequena reunião que já não era tão silenciosa, já que o maldito morto vingativo fazia parte da mesma.

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